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A gestão volêmica em pacientes críticos é, sem dúvida, um dos maiores desafios na medicina intensiva. Por muito tempo, a busca pelo “Santo Graal” da aferição da volemia nos levou a métodos que, embora úteis, nem sempre refletiam a complexa realidade hemodinâmica. A pressão venosa central (PVC), por exemplo, mostrou-se um indicador limitado, e mesmo dispositivos avançados de termodiluição, que medem volume e pressão, falham em capturar a essência do problema.

A grande questão que se impõe é: estamos fazendo as perguntas certas? A volemia em si é o que realmente importa, ou deveríamos focar nos seus efeitos sobre a perfusão orgânica? É exatamente nesse ponto de virada que o VExUS (Venous Excess Ultrasound Score) surge como uma ferramenta revolucionária no arsenal do ultrassom point-of-care (POCUS).

O Paradigma do VExUS: Além da Volemia, Foco na Perfusão Orgânica

O VExUS não busca quantificar o volume sanguíneo total, mas sim identificar o estado hemodinâmico dos órgãos e a coerência da circulação venosa e da função ventricular direita. Ele nos orienta a interrogar o padrão do fluxo sanguíneo em diversos órgãos, revelando o impacto da congestão venosa na perfusão tecidual. O VExUS é um score desenvolvido para quantificar precisamente o estado de “congestão venosa”, uma condição hemodinâmica que pode deteriorar o padrão de fluxo orgânico e, consequentemente, gerar disfunção de múltiplos órgãos. Em um estudo de validação publicado por Haycock e colaboradores em 2020 no The Ultrasound Journal (1), uma análise post-hoc de pacientes em pós-operatório de cirurgia cardíaca demonstrou a capacidade do VExUS de predizer a incidência de injúria renal aguda em pacientes com congestão venosa.

O Protocolo VExUS: Um Guia Passo a Passo para a Avaliação Ultrassonográfica

A aplicação do VExUS envolve uma avaliação sistemática de quatro estruturas vasculares, utilizando o Doppler pulsátil para analisar os padrões de fluxo.

PASSO 1: Avaliação da Veia Cava Inferior (VCI)

Tradicionalmente, a avaliação da VCI era o ponto de partida. Embora o score original considerasse uma VCI com diâmetro máximo superior a 2 cm como um critério inicial, hoje sabemos que o diâmetro isolado da VCI pode não ser um indicador absoluto de pressões de enchimento ventriculares direitas elevadas. Ainda assim, sua avaliação continua sendo um componente importante para o contexto geral.

PASSO 2: Avaliação da Veia Hepática

Este é, talvez, o passo mais complexo e informativo. As veias hepáticas estão intimamente ligadas ao átrio direito, e seus padrões de fluxo refletem diretamente as alterações de complacência do coração direito. O Doppler pulsátil da veia hepática normalmente espelha o pulso venoso da PVC, apresentando ondas características:

Imagem 1 – Aspecto normal do doppler pulsado hepático (Radiopaedia.org).

Onda “A”: Representa o fluxo retrógrado devido à contração atrial.

Onda “S”: Indica fluxo anterógrado durante a sístole ventricular, resultado do deslocamento do anel tricúspide. Sua profundidade é inversamente proporcional à congestão venosa.

Onda “D”: Corresponde ao esvaziamento atrial protodiastólico, representando fluxo anterógrado.

A graduação da congestão venosa pela veia hepática se dá pela análise dessas ondas:

Normal: Onda “S” mais profunda que a onda “D”.

Alteração Leve/Moderada: Onda “S” com profundidade menor que a onda “D”, indicando perda de complacência ventricular direita.

Alteração Grave: Inversão da onda “S” (aparecendo acima da linha de base), significando que a pressão do átrio direito supera a das veias hepáticas, gerando fluxo retrógrado durante a sístole.

PASSO 3: Avaliação da Veia Porta

A veia porta, por ser protegida pelos capilares sinusoides, possui um fluxo normalmente laminar e contínuo. No entanto, com a instalação da congestão venosa, esse padrão se torna pulsátil. A pulsatilidade é quantificada pelo Índice de Pulsatilidade (IP), calculado como (Vmáx – Vmín) / Vmáx.

Normal: Fluxo laminar, com baixa pulsatilidade.

Alteração Leve/Moderada: IP entre 30-49%.

Alteração Grave: IP superior a 50%.

PASSO 4: Avaliação da Veia Interlobar Renal

Semelhante à veia porta, a veia interlobar renal também é protegida dos efeitos de maior pulsatilidade venosa devido à sua distância do átrio direito.

Normal: Fluxo laminar.

Alteração Leve/Moderada: Padrão bifásico.

Alteração Grave: Padrão monofásico, com reversão do fluxo sistólico que desaparece sob o fluxo arterial.

Imagem 2 – Padrões de anormalidade do doppler hepático, portal e interlobar renal e sua graduação (Quantifying systemic congestion with Point-Of-Care ultrasound: development of the venous excess ultrasound grading system. Ultrasound J. 2020).

Interpretação Final do Score VExUS

Após a avaliação de cada uma dessas veias, o VExUS permite uma graduação da congestão venosa, conforme a tabela de classificação original:

Grau 0: VCI < 2 cm (ou sem sinais de congestão significativa nas outras veias, mesmo com VCI dilatada, dependendo da interpretação atual).

Grau 1: VCI > 2 cm E uma ou mais alterações leves/moderadas nas veias hepática, porta ou interlobar renal, sem alterações severas.

Grau 2: VCI > 2 cm E uma alteração severa em qualquer uma das veias (hepática, porta ou interlobar renal).

Grau 3: VCI > 2 cm E duas ou mais alterações severas nas veias (hepática, porta ou interlobar renal).

É crucial ressaltar que, embora a VCI seja mencionada na classificação original, a interpretação moderna do VExUS foca mais nas alterações dos padrões de fluxo das veias hepática, porta e renal, que são indicadores mais diretos da congestão orgânica.

A Relevância Clínica do VExUS na Prática Intensiva

A introdução do VExUS no cenário do POCUS em Medicina Intensiva foi, de fato, revolucionária. Ele nos oferece uma perspectiva funcional da hemodinâmica, permitindo uma avaliação mais precisa do impacto da congestão venosa na perfusão orgânica e na função renal. Ao invés de apenas estimar a volemia, o VExUS nos capacita a entender como o sistema cardiovascular está respondendo ao conteúdo intravascular e, mais importante, como essa resposta está afetando os órgãos-alvo.

Essa abordagem direcionada é fundamental para guiar decisões terapêuticas, como a administração ou restrição de fluidos, e para monitorar a resposta às intervenções em pacientes com risco de injúria renal aguda ou outras disfunções orgânicas relacionadas à congestão. Todavia, a aplicação correta do score exige experiência e prática para o desenvolvimento da habilidade necessária na aquisição e interpretação das imagens e padrões de Doppler. A curva de aprendizado é real, mas o investimento vale a pena, dada a riqueza de informações que essa ferramenta oferece.

Como aprender?

Agora que você já conhece a importância e aplicabilidade do score, é hora de se preparar corretamente para aplicá-lo na sua rotina de avaliação. Através do treinamento da SJPOCUS em “Pocus Avançado para o Doente Crítico” você aprenderá na prática com profissionais qualificados e que utilizam esse recurso rotineiramente na avaliação de doentes críticos. Caso tenha interesse em nosso treinamento presencial ou em receber materiais online sobre o tema, entre em contato conosco!

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Beaubien-Souligny W, Rola P, Haycock K, Bouchard J, Lamarche Y, Spiegel R, Denault AY. Quantifying systemic congestion with Point-Of-Care ultrasound: development of the venous excess ultrasound grading system. Ultrasound J. 2020. Disponível em: DOI: 10.1186/s13089-020-00163-w.

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